PAPA FRANCISCO: UM LEGADO
“O Papa é argentino e Deus é brasileiro!” (Papa Francisco, JMJ 2013)

Por Luciano Domingos
Conclave é o momento no qual a Igreja Católica elege um novo Papa. A palavra deriva do latim “cum clavis” (com chave) e do fato de que, antigamente, os cardeais eram literalmente trancados à chave na Capela Sistina ou em algum outro lugar, sem comunicação alguma com o povo, até que o novo Papa fosse eleito. Atualmente, todos os cardeais com menos de 80 anos são abrigados a participar do Conclave e estão aptos a votarem e a serem votados. A sucessão papal iniciou com Pedro, o primeiro Papa:
Mateus 16, 13-19: Chegando Jesus ao território de Cesareia de Filipe, perguntou aos discípulos: "Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?" Disseram: "Uns afirmam que é João Batista, outros que é Elias, outros, ainda, que é Jeremias ou um dos profetas". Então lhes perguntou: "E vós, quem dizeis que eu sou?" Simão Pedro, respondendo, disse: "Tu és o Cristo, o filho do Deus vivo". Jesus respondeu-lhe: "Bem-aventurado és tu, Simão, filho de Jonas, porque não foi carne ou sangue que te revelaram isso, e sim o meu Pai que está nos céus. Também eu te digo: Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja, e as portas do Inferno nunca prevalecerão contra ela. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus e o que ligares na terra será ligado nos céus, e o que desligares na terra será desligado nos céus.
No dia 11 de fevereiro de 2013, a Santa Sé informou que Joseph Aloisius Ratzinger, o Papa Bento XVI, renunciaria ao papado. E assim aconteceu em 28 de fevereiro do mesmo ano, às 20h. Sua idade e a fragilidade de sua saúde não mais lhe permitiam continuar à frente da Igreja. Então, convocou-se o Conclave.
Na primeira votação, Jorge Bergoglio quase foi eleito. A fumaça negra saiu pela chaminé da Capela Sistina, indicando que os cardeais não haviam chegado a uma decisão. O Cardeal Cláudio Hummes, nosso querido e inesquecível Dom Cláudio, chegou até ele e disse: “Não tenha medo, hein! Isso é o que o Espírito Santo faz!”. Para ser eleito, deveria alcançar dois terços dos votos. E somente conseguiu na terceira votação da tarde daquele dia. No dia 13 de março de 2013, o jesuíta argentino Cardeal Arcebispo de Buenos Aires Jorge Mario Bergoglio foi eleito o 266º (ducentésimo sexagésimo sexto) Papa da Igreja Católica. Em meio à salva de palmas dos cardeais e à contagem dos votos que continuava, Dom Cláudio Hummes mais uma vez aproximou-se dele, abraçou-o, beijou-lhe a face e disse-lhe carinhosamente, mas com a firmeza da voz que lhe era peculiar: “Não se esqueça dos pobres...” A fumaça branca invadiu os céus do Vaticano e do mundo.
Seguindo o que era prescrito no ritual de eleição do novo Papa, o Cardeal Giovanni Battista Re, decano da Capela Sistina naquele momento, aproximou de Jorge Bergoglio e fez-lhe as duas perguntas obrigatórias:
“Aceita a sua eleição canônica como Sumo Pontífice?”, que afirmativamente foi respondida.
“Com qual nome você quer ser chamado?” Inspirado pelas palavras de Dom Cláudio Hummes, e em homenagem a São Francisco de Assis, o Santo dos Pobres, escolheu e acolheu o nome Francisco. Nascia o Papa Francisco, o papa que veio “lá do fim do mundo...” e nunca mais pisaria em sua terra natal, a Argentina. E nascia, também, o seu grande legado. A frase “Não se esqueça dos pobres...” ficou em sua mente e em seu coração até o final de seu papado.
De início, cordialmente recusou os diversos paramentos papais e adotou apenas a veste branca, mantendo a sua cruz peitoral de arcebispo e os seus próprios sapatos, que eram ortopédicos. Pediu que Dom Cláudio Hummes e que Dom Agostino Vallini estivessem ao seu lado quando fosse apresentado ao mundo na varanda da Basílica de São Pedro após a declaração “HABEMUS PAPAM”.
Não há como não se emocionar ao lembrar-se da quantidade de pessoas que estavam na Praça de São Pedro no dia oficial de sua posse, a quem ele saudou com alegria e com muito carisma; assim como foi emocionante o encontro entre o Papa Francisco e o Papa Emérito Bento XVI, demonstrando a sua humildade. Humildade também demonstrada ao se recusar a morar nos aposentos papais e continuar hospedado na suíte do hotel do Vaticano.
Sua primeira viagem oficial foi ao Brasil, para a JMJ 2013 – Jornada Mundial da Juventude de 2013, na cidade do Rio de Janeiro.
Quando anunciou que viria ao Brasil, disse que era “para colocarmos mais água no feijão”, pois ele estava vindo. Enquanto cardeal, já havia visitado o nosso país, especificamente a cidade de Aparecida, em São Paulo, para 5ª Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Em sua chegada a terras brasilis como Papa, andou em um carro comum, com os vidros abertos, para desespero daqueles que fizeram a sua segurança; visitou comunidades carentes e o Hospital São Francisco de Assis, da Providência de Deus, na zona norte; e convidou os jovens católicos a serem revolucionários. Falou do acolhimento que recebeu dos brasileiros. Alegra-nos dizer que, na Missa de Envio, no encerramento da JMJ 2013, havia um público de 3,7 milhões de pessoas.
O Papa Francisco era um apaixonado por futebol e torcedor inveterado do Clube Atlético de San Lorenzo de Almagro, ou simplesmente San Lorenzo, também conhecido como Ciclón. Sempre que encontrava um brasileiro, questionava sobre quem era o melhor jogador: Pelé ou Maradona, demonstrando o seu bom humor e simpatia. Certa vez, ao ser questionado sobre a eterna rivalidade entre Brasil e Argentina, disse com alegria: “quanto à rivalidade, creio que já está totalmente superada. Porque negociamos bem. “O papa é argentino e Deus é brasileiro”.
Ao retornar à Itália após a JMJ 2013, durante a coletiva de imprensa concedida em pleno voo, à repórter brasileira Ilze Scamparini questionou o Papa sobre o suposto envolvimento do Monsenhor Battista Ricca e um capitão da guarda suíça, que fizera a segurança do Papa, e também questionou sobre a homossexualidade. Ele respondeu com sabedoria, e sua resposta ressoou em cada canto do planeta, surpreendendo a muitos, acolhendo a tantos outros e causando indignação naqueles mais conservadores que ainda não vivem no século 21: “Escrevem tanto sobre o lobby gay. Até agora não encontrei ninguém no Vaticano com uma carteira de identidade que diga ‘gay’. Se uma pessoa é gay e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la? O Catecismo da Igreja Católica diz que não se deve marginalizar estas pessoas, devem ser integradas à sociedade. Devemos ser irmãos. O problema é fazer lobby de pessoas gananciosas, lobby de políticos, de maçons, tantos lobbies. Esse é o pior.” Assim, demonstrou que o acolhimento deve ser regra em nossa Igreja, e não exceção, e que as pessoas devem estar no coração da Igreja como elas realmente são, e não serem moldadas para somente depois serem aceitas. Ainda sobre este assunto, pouco tempo depois, declarou que a Igreja tinha o direito de emitir as suas opiniões, mas jamais teria o direito de interferir na espiritualidade das pessoas, especialmente na vida dos gays e lésbicas.
Com a Exortação Apostólica “Evangelii Gaudium” (A Alegria do Evangelho), o Papa Francisco convidou a todos a repensarem a Igreja, transformando-a em uma instituição mais acolhedora; em saída a fim de encontrar o povo de Deus, sendo mais missionária e a fim de anunciar o Evangelho com alegria. Fala sobre o clericalismo que ainda persiste na Igreja e propõe uma maior participação dos leigos, principalmente dos jovens, e convocou a cada um de nós, cristãos-católicos, a cuidarmos dos mais esquecidos, dos idosos, das minorias, dos povos indígenas, dos marginalizados, enfim, de todos aqueles que são fracos e que se sentem fracos diante esta sociedade muitas vezes opressora, cruel e violenta.
Somem a isso as outras declarações que causaram polêmicas e repercutiram mundo afora: a oposição da Igreja em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, mas um maior apoio e acolhimento para com alguns tipos de uniões civis, católicos divorciados, gays e lésbicas e para com as pessoas que estão vivendo em uma situação considerada irregular pela Igreja; as reformas legais para que a nulidade conjugal fosse concretizada; o perdão em relação ao pecado do aborto. E ainda a declaração de que a Igreja deveria pensar em ordenar mulheres para o Diaconato (uma reivindicação de décadas), a exigência de um pedido de desculpas da Igreja para com os gays e para com os outros que por ela foram ofendidos, marginalizados ou explorados.
Então, em 16 de julho de 2017, o Papa Francisco recebeu uma Carta formal elaborada por acadêmicos, teólogos e diversos membros do Clero que se opunham às suas declarações e avanços. Estes conservadores o acusaram de disseminar opiniões e posicionamentos contrários à fé e à doutrina católicas, especialmente em relação à Moral, ao Casamento e à Eucaristia.
Depois de virem à tona os escândalos de abusos sexuais cometidos por padres no Chile, o Vaticano emitiu uma Carta Papal que falava diretamente sobre o assunto. Em um trecho da referida Carta, ele diz: “Com vergonha e arrependimento, reconhecemos como comunidade eclesial que não estávamos onde deveríamos estar, que não agimos em tempo hábil, percebendo a magnitude e a gravidade dos danos causados a tantas vidas. Não mostramos cuidado com os pequenos; nós os abandonamos.” Passou, então, a ter um olhar mais severo sobre o assunto, discutindo-o mais profundamente. Removeu bispos, aceitou pedidos de renúncia e tratou com firmeza os sacerdotes envolvidos nos escândalos de abusos. Por fim, aprovou a reforma do Código Penal da Santa Sé, principalmente no que se refere a crimes sexuais. Tempos depois, determinou que todas as dioceses católicas do mundo estabelecessem um sistema público e acessível para denúncia e relatos de abusos.
Como Papa e como Chefe de Estado da Cidade do Vaticano, demonstrou diplomacia política e uma busca incansável pela paz. Foi parte importante para estreitar a reaproximação entre Cuba e os Estados Unidos. Foi o segundo papa na História a visitar o Japão. Nas Filipinas, reuniu quase sete (7) milhões de pessoas. Foi o primeiro papa a visitar o os Emirados Árabes Unidos, no Golfo Árabe e em Abu Dhabi, capital, tornou-se o primeiro papa a celebrar uma missa e a discursar para milhares de pessoas. Ofereceu-se para mediar os acordos de paz entre a Ucrânia e a Rússia.
Foi o primeiro papa a visitar o Iraque, que estava praticamente destruído pela guerra (esta visita foi a primeira viagem por ele realizada no pós-Covid). Visitou a Indonésia e países da Ásia. E era crítico ferrenho da situação de guerra e conflito que ainda vigora na Faixa de Gaza, entre Israel e Palestina. Crítico, também, das políticas de imigração na Europa e nos Estados Unidos.
E o Papa Francisco trouxe, definitivamente, a Ecologia como pauta para dentro da Igreja, exortando-nos a cuidarmos da nossa casa global. Em 2015, publicou a Encíclica “Laudato Si” (do latim, significa ‘Louvado seja’), que fala sobre os cuidados que devemos dispensar para com a natureza e o meio ambiente, e para com as outras pessoas. O nome da encíclica é uma clara referência ao Cântico das Criaturas de São Francisco de Assis.
Enfim, o seu legado é de amor, paz, empatia e de humildade; de acolhimento, responsabilidade para com a Igreja e para com o próximo; de entrega aos desígnios de Deus, desprendimento e de amizade; de emoção, carisma, sinceridade e diplomacia; de respeito a outras religiões e a outras culturas. E agora, mais do que tudo, um legado de saudade pelo homem que agora se encontra na eternidade, e de orgulho por um homem que, em tão pouco tempo, ensinou-nos tanto.
O Papa Francisco, nascido Jorge Mario Bergoglio, faleceu no dia 21 de abril de 2025, às 2h35 pelo horário de Roma (às 7h35 pelo horário de Brasília). Fez a sua Páscoa no dia seguinte em que a Igreja celebrou a Páscoa. As causas de seu falecimento, constantes na Declaração de Óbito de sua Santidade Francisco emitida pelo Vaticano, foram AVC – Acidente Vascular Cerebral, Coma e Colapso Cardiovascular Irreversível.
Ao Cardeal Kevin Joseph Farrell, camerlengo (assistente pessoal e direto do Papa Francisco), coube a triste tarefa de anunciar o falecimento deste grande homem:
Anúncio do Camerlengo Farrell da Casa Santa Marta:
Queridos irmãos e irmãs, com profunda tristeza devo anunciar a morte de nosso Santo Padre Francisco. Às 7h35 desta manhã, o Bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do Pai. Toda a sua vida foi dedicada ao serviço do Senhor e de Sua Igreja.
Ele nos ensinou a viver os valores do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal, especialmente em favor dos mais pobres e marginalizados.
Com imensa gratidão por seu exemplo como verdadeiro discípulo do Senhor Jesus, recomendamos a alma do Papa Francisco ao infinito amor misericordioso do Deus Trino.
Vatican News, 21 de abril de 2025
Referências:
Bíblia de Jerusalém
A Santa Sé - https://www.vatican.va
Catecismo da Igreja Católica
Canção Nova – Portal de Notícias - https://noticias.cancaonova.com
G1 – Portal de Notícias da Globo - https://g1.globo.com
Instituto Humanitas Unisinos - https://ihu.unisinos.br
Vida - Papa Francisco // Francisco, Papa “Vida: a minha história através da história” / Papa Francisco com Fabio Marchese Ragona ; tradução Milena Vargas – Rio de Janeiro : 1ª Publicação em 2024, Itália